Participe da comunidade do meu Blog

domingo, 18 de julho de 2010

Pedras de fabricação própria

Narcotraficantes brasileiros absorvem conhecimento e começam a processar matéria-prima vinda da Bolívia, do Peru e da Colômbia

letraOs narcotraficantes brasileiros estão se tornando empreendedores num ramo em que até então figuravam apenas como atravessadores. A expansão dos negócios, com uma carteira de clientes que só cresce, levou-os a investir no processamento da matéria-prima vinda da Bolívia, da Colômbia e do Peru. Até há pouco, apenas importavam o pro­­­duto já pronto, em pó ou pedra. A prática levou-os a perceber que o lu­­­cro é maior quando se importa a pasta-base de coca para eles próprios fazê-la render. Homens de visão, puseram o país num novo status e agora suas pedras levam o selo Made in Brazil.

A razão dessa tendência está, como em qualquer ramo, no custo-benefício. Um quilo de pasta-base rende entre 12 e 15 mil pedras de crack. Levar um quilo dela é mais fácil do que carregar um saco de pedras. Os números são elucidativos. O volume de pasta apreendida em 2009 no Brasil cresceu mais de três vezes em relação ao ano anterior. Saltou de 412 quilos para 1,4 tonelada. Já neste ano, o Narcodenúncia mostra aumento de 60% na apreensão dessa matéria-prima no Paraná. Desde 2003 foram confiscados 24,5 quilos por ano, em média. Mas só no último semestre a quantidade já chega a 32 quilos.

As polícias conseguem retirar de circulação apenas uma parte do que chega ao consumidor final. Ainda assim, os dados oficiais são preocupantes porque revelam a fabricação do pó e da pedra em território nacional, tendência confirmada com a descoberta de 11 laboratórios de refino no país entre março e maio deste ano, segundo a Agência Brasil. Um deles funcionava na Cidade Industrial de Curitiba. Nessa semana, a polícia do Paraná prendeu em Santa Catarina e em São Paulo dois dos maiores traficantes de Curitiba. Um deles mantinha um laboratório de refino de pó e pedra na capital paulista.

Os números podem ser ainda maiores se considerado que nem toda pasta-base apreendida é identificada como tal e acaba sendo registrada como cocaína. “A diferenciação entre pasta-base, crack e cloridrato (pó) é, muitas vezes, realizada de forma técnica, quando da elaboração do laudo pericial (depois da apreensão). Daí a distorção dos números. Muitas vezes se apreende pasta-base e, para fins estatísticos, entra no ‘bolo’ de apreensões de cocaína apenas”, explica o chefe da Delegacia de Repressão a Entorpecentes da Polícia Federal (PF) no Paraná, Rivaldo Venâncio.

Ainda em março, a Junta Inter­­­­na­­­cional de Fiscalização de Entorpecentes (Jife) tinha apontado que o aumento de apreensões se deve ao crescimento do cultivo e da produção de coca no Peru e, principalmente, na Bolívia, e na consequente queda no preço da matéria-prima. O Relatório Mundial de Drogas, divulgado em junho pelo Escritório sobre Drogas e Crime da Organização das Nações Unidas (ONU), repetiu o alerta. “Tem se tornado cada vez mais vantajoso adquirir a pasta, que depois se transforma em cocaína (pó) ou crack (pedra), do que traficar a cocaína pronta, muito mais volumosa e fácil de identificar”, diz o delegado licenciado da PF Fernando Fran­­cischini, ex-secretário especial Anti­­­dro­­­gas de Curitiba.

Contudo, Venâncio afirma que, via de regra, o crack entra pronto no país. “A exceção é a fabricação”, diz. Por quanto tempo, no entanto, não se sabe. “A quantidade de pasta-base apreendida pode parecer pequena, mas não é um dado a desconsiderar”, lembra o delegado da PF em Foz do Iguaçu, Rodrigo Perin Nardi.

Já em Guaíra, também na fronteira do Paraná com o Paraguai, onde se apreendeu quase 4 dos 17 quilos de pasta-base recolhidos em 2009 no estado, o delegado local da PF, Érico Ricardo Saconato, lembra que a fabricação do crack é muito simples e que o fechamento de um laboratório da droga não é tão frequente. “O crack é fabricado em casa. Tivemos um caso no ano em que o indivíduo estava fazendo a mistura em uma forma de bolo, na residência.”

Laboratório e refino

Laboratório é o local onde a folha da coca é transformada em pasta base ou cocaína e refino é onde a droga á batizada com mais produtos e cresce em volume, seja em forma de pó ou pedra. Segundo o delegado da PF Wag­­­ner Mesquita, o Brasil não teria laboratórios, mas apenas refinos. Os laboratórios não são de processamento. “O que é fechado no país é o local onde é feito o batismo da droga. Por exemplo, 100 quilos de pasta-base podem virar 500 quilos de cocaína”, explica.

Paraná é corredor do tráfico

A pasta de coca e seus derivados têm chegado ao Brasil principalmente da Bolívia, mas também do Peru e da Colômbia. Entram no Brasil pelo Acre; por Cáceres (MT) e Guajará-mirim (RO) rumo ao Nordeste; por Corumbá e Ponta Porã (MS); e por Guaíra e Foz do Iguaçu, via Paraguai, rumo a Curitiba e outras cidades do Sul e do Sudeste do país. Parte segue para Europa e África, via Brasil. De acordo com o chefe da Delegacia de Repressão a Entorpecentes da Polícia Federal no Paraná, Rivaldo Venâncio, as cidades de Entre Rios do Oeste, Pato Bragado e Santa Helena, no Oeste do Paraná, também são entradas da droga no estado.

Por aqui, as cargas chegam geralmente via carros de passeio e caminhões. As principais estradas usadas são a BR-271, de Guaíra, e a BR-277, segundo o che­­fe de Policiamento e Fiscaliza­ção da Polícia Rodoviária Federal do estado, inspetor Gilson Cor­tia­­­no. A corporação é a campeã nacional de apreensões de crack e com uma média considerável nas de cocaína. Do primeiro se­­mestre do ano passado para o mesmo período de 2010 houve aumento de 150% nas apreensões de cocaína (de 45,6 para 113,9 quilos) e o dobro nas de crack (118,9 para 240,6 quilos).

Em Guaíra, o delegado da PF Érico Ricardo Saconato diz que as apreensões de cocaína e derivados nos primeiros meses de 2010 já superam as do mesmo período do ano passado: de 24,4 para 52,8 quilos, aumento de 54%. As cargas de pasta e pedras são transportadas em pequenas quantidades. “O número de pessoas trabalhando para o tráfico aumentou, enquanto a quantidade diminuiu. A pasta vem em três ou quatro quilos”, diz. Saconato conta que o crack tem tomado conta da região Oeste e que foi verificado o uso da droga até mesmo no meio rural, entre cortadores de cana. “É uma droga tão barata que vem substituindo a maconha.”

Em ascensão

Em Foz do Iguaçu, a situação não é diferente. O delegado Rodrigo Perin Nardi lembra que a droga mais apreendida é a maconha (18 toneladas em 2009, contra 15 em 2008), mas a cocaína e seus derivados têm crescido. “Neste ano foram 3,1 quilos de pasta-base, 36 de cocaína em pó e 47 de crack, além de 64 quilos de lidocaína (uma das substâncias usadas para batizar e dobrar o volume da cocaína). No ano passado foram 280 quilos só de cocaína recolhidos pela delegacia de Guaíra”. Nardi explica que, enquanto o quilo da maconha é comercializado a R$ 50 no Paraguai, o da cocaína chega a R$ 9 mil. “Isso também explica as diferenças no tráfico, modo de transporte e quantidade de uma droga e outra.” Fonte: Gazeta do Povo,reportagem de Fabiane Ziolla Menezes e Aline Peres

Efeito é imediato e devastador
Inalado pelo pulmão, o crack tem um efeito bem mais devastador do que a cocaína, que chega ao organismo por outras vias. “A superfície de absorção do pulmão é grande e permite a entrada de uma quantidade muito maior da droga. Além disso, o acesso do pulmão ao cérebro é quase imediato”, diz o psiquiatra Félix Kessler, vice-diretor do Centro de Pesquisa em Álcool e Drogas do Hospital das Clínicas de Porto Alegre, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Segundo o Centro Brasi­­­­leiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), os efeitos do crack podem ser sentidos entre 5 e 15 segundos, enquanto os da cocaína cheirada ocorrem em 10 a 15 minutos, e o da injetável entre 3 e 5 minutos.

O perfil do usuário mudou nos últimos anos. Se antes a droga estava atrelada ao consumo pelas classes mais baixas (como D e E), hoje ela circula livremente em outras camadas sociais e em outros perfis. Na fissura do crack encontram-se pessoas de várias idades, embora o perfil majoritário seja de homens entre 18 e 35 anos de idade. O consumo na infância, pela mãe durante a gestação e amamentação, e na idade mais avançada, tornou-se mais frequente de cinco anos para cá. (FZM)

Leia entre amanhã e quinta-feira na Gazeta do Povo a continuidade desta série de reportagens sobre cada um desses perfis de usuários do crack.

Sujeira aumenta o volume
A composição química da coca (Erythroxylon coca) possui de 30% a 50% de alcalóides de cocaína. Na primeira fase de extração de cocaína, que acontece em laboratórios dos países fornecedores (Colômbia, Peru e Bolívia), as folhas são tratadas (prensadas) com um solvente orgânico, como querosene ou gasolina, e ácido sulfúrico, formando uma pasta de até 90% de sulfato de cocaína. Se a essa pasta for adicionada ácido clorídrico, produz o cloridrato de cocaína, o pó. Se a pasta e o cloridrato forem misturados, junto com bicarbonato de sódio (produto sem controle específico da Agência Nacional de Vigilância da Sanitária ou da PF, encontrado em farmácias para outros usos), e aquecidos várias vezes tem-se a cristalização do pó, o crack.

Em nome do lucro, traficantes aumentam os volumes de pó e pedra com substâncias absurdas. “Em média, a cocaína apreendida no país tem pureza de 30%, segundo perícias do Instituto Nacional de Criminalística. Os outros 70% são substâncias como pó de mármore, talco e vidro moído, só para dar volume”, explica o delegado licenciado e ex-secretário especial Antidrogas de Curitiba, Fernando Fran­­cischini. O pouco que sobra de cocaína na mistura, no entanto, já é suficiente para viciar. O comprometimento é tanto que, segundo avaliação do de­­le­­gado da PF Wagner Mesquita, se o usuário brasileiro usar a cocaína pura, ele pode morrer de overdose. (AP e FZM)

Nenhum comentário: